[Enseada de Botafogo] Edifício Argentina

A toreador estacionou às portas do prédio e se dirigiu diretamente a entrada principal, com seus passos malemolentes Xica da Silva cruzou a soleira. Ao ser abordada, identificou-se dizendo que tinha um encontro com O Connor.

Xica avança em direção à mesa. Ela não caminha muito rápido, antes observa o local e aguça seus sentidos com o poder do sangue. Estava correndo riscos, mas duvidava que fossem lhe fazer mal nesse momento. Ao ficar diante da mesa, cumprimenta o seu anfitrião.

- Boa noite, senhor O'Connor, imagino!

O asco, a agressividade, a fúria que envolvia aquele homem, que apesar de aparentar uma calma sobrenatural, exalava terror que alcançava Xica de uma maneira que ela não esperava encontrar no Rio de Janeiro. A antiga escrava se sentiu diminuída de tal forma que em sua mente morta-viva voltaram as imagens de tantos quanto ela ficaram presos no tronco, sofrerem por terem nascido com a cor errada de pele. A toreador tentava não demonstrar isso, mas seus pelôs se arrepiaram ante ao toque de Lucian O'Connor, para quem respondeu com um leve toque de descontrole.

- Nem comer, nem beber, meu caro. O senhor faz com que eu me sinta em uma armadilha, tanto sabe sobre mim e eu nada sei sobre tu. Outros tantos teriam corrido desesperados diante da aura que emana, muitos outros usariam dos poderes do sangue para serem capazes de ler o que seus sentimentos demonstram. Felizmente, ou seria infelizmente, eu não sou assim. Se posso sentir vossa agressividade, se tua mera presença me diminui dessa forma, não sei como sobreviveria a uma avalanche de sensações provocadas pelos auspicius, portanto diga. O que você é e o que quer de mim, Xica da Silva!

Apesar de se sentir diminuída, apesar do terror que ele lhe provocava, a mulher não conseguia ficar calada, não conseguia deixar que sua altivez permanecesse contida por muito tempo. Com tudo que O'Connor demonstrava saber ela já estaria morta, caso sua destruição fosse o objetivo do seu anfitrião, portanto Xica da Silva seria a princesa negra naquele instante!

Ela gostou da conversa, da forma como O'Connor falava, apesar do quão desagradável era a presença dele. A vampira sorriu ao ver a aproximação do garçon, não como se flertasse com ele. Não havia interesse nos serviçais, a nobreza e o controle era o que almejava.

- Conhecendo-nos como conhece, Lucian, digo que encontramos na noite outros prazeres aos quais nos entregamos, mergulhando nas delícias do sangue. Não lembro de nenhum alimento ou bebida mortal, nem mesmo o mais magnífico dos sexos que sequer se aproximasse ao êxtase que o líquido rubro nos proporciona.

Ela estava rodeando, fora adiante, antes de retroceder. Sabia que ele jogava, a analisava pessoalmente, embora provavelmente já tivesse informações suficientes a respeito da negra para que pudesse testa-la.

- Apenas um tolo tentaria usar dos dons do sangue diante de ti, na situação em que nos encontramos. Fui convidada ao seu teto e se quisesse me ferir o teria feito sem que eu soubesse. Conheces a minha sede, sabe a respeito de minhas ambições. Não quero ser alguém nessa cidade, meu querido. - ela levantou-se, teatral, embora mais uma vez imaginasse que sua performance não iria impressiona-lo. - Quero o baralho em minhas mãos, quero os do sangue a meus pés. Muitos entre os meus podem dizer que meus desejos são levianos, mas quantos em minha época de mortal, poderiam dizer que a negrinha alcançaria o posto que alcançou. E você entende isso, Lucian O'Connor. Não teria me procurado se não acreditasse que com os aliados certos eu poderia me colocar no lugar que te interessa.

Ela mudou a expressão do seu rosto, de pura e confiante, mas bem humorada, uma certa seriedade tomou conta da face da toreador. Talvez o motivo para essa mudança fosse óbvio. Os nosferatu não eram presas fáceis, pelo menos não se metade das histórias que contavam a respeito de François Carlent fossem verdade. Xica podia confiar em O"Connor? Não! Mas em quem ela poderia se apoiar para atingir seus objetivos. Um peão? Era dessa forma que ela estava vivendo nas primeiras noites do Rio de Janeiro. Continuaria assim, com Lucian, mas pelo menos teria para si as luzes da ribalta.

- A Cabeça dos nosferatu? Se o que ouvi for verdade não será fácil. François Carlent parece antigo como não posso conceber, mas se bem entendi o que está me dizendo... estou travando contato com um ser sobrenatural diferente... talvez um licantropo? É essa a verdade por trás de sua vida, Lucian? - ela perguntou, deixando escapar a surpresa enquanto ele falava a respeito do fim da paz entre vampiros e lobisomens, da aliança travada entre independentes e sabbat. Um ataque de proporções inimagináveis? Maior que o da cidade de Deus? do Engenhão? Se a máscara tinha sido rachada agora ela tendia a explodir em todas as direções.

- E por que eu iria querer sair daqui, meu amigo? - não havia máscaras na voz de Xica, estava claro no tom de voz que ela usava que tinha ficado encantada com o que ouviu. A sede de poder, a fome de grandeza. Lucian atingira pontos sensíveis da natureza cainita. A paixão do controle estava acesa nos olhos negros da beldade. - E como posso mobilizar os meus parcos recursos para que nosso lucro seja tão satisfatório quanto possível? Do que já consegui inferir da cidade... acredito que os brujah podem ser tranquilamente seduzidos para nosso partido... eles tem suas próprias contas a acertar com os nosferatu... talvez até se destruam mutuamente, sem que precisamos fazer mais do que dar alguns incentivos para que se atraquem na guerra aberta!

Pelo fim, assim era a forma como ela preferia continuar com suas palavras, suas respostas. Havia um motivo claro pelo qual a toreador agia assim, mas não era hora de pensar nisso. Agora entendia, em parte, por que os arrepios, porque o desconforto, por que o medo que a criatura a sua frente lhe provocava. Carlent era antigo, tão antigo quanto a memória da vampira sequer podia imaginar... cria de um dos antigos. Havia tanto poder assim envolvido naquela situação? Se Lucian O'Connor não temia François, Xica ficava ainda mais amedrontada, diante de ambos. Mas se estava na chuva,deveria se molhar.

- Sim. Eles contavam com o apoio dos ventrue, mas a morte de Kennedy provocou certo desbalanceamento nas relações entre os sangue azul e os ratos de esgoto. Por isso devemos agradecer aos membros do sabbat. E nós toreador temos nossa própria vantagem nisso, afinal, foi Horazio quem contratou os assamitas que receberam mais da espada de caim pra derrubar a Ilha Fiscal. O que torna tudo engraçado. Um pequeno gesto pode provocar uma avalanche. Agora os feiticeiros são o principal ponto de apoio dos ratos. Os outros os seguem simplesmente por medo da força que os fedorentos controlam. Como eu disse antes, os brujah tem seus próprios problemas com os nojentos, assim como nós toreador. Os malkavianos é que parecem não ter problema com ninguém.

Depois dessas divagações, ela voltou a se dirigir ao poder que ele reunia.

- E existe alguma forma de, eu mesma, ser capaz de desenvolver uma fração desse conhecimento, ou desses poderes? - a toreador era ousada. Se Lucian fosse tão poderoso quanto dizia, não precisava dela de forma nenhuma, mas a tinha procurado e talvez a rosa pudesse conseguir uma lasca daquilo tudo, além da coroa que almejava.

Ela parou para refletir, mas sem deixar de dizer nada. Ou sem perder o fio do diálogo. Criar uma forma de antagonizar os malkavianos e os nosferatu talvez não fosse difícil, mas fácil não seria. Entretanto ela tinha que pensar em algo nesse sentido. E havia mais. Os ventrue e os ratos de esgoto não morriam de amores uns pelos outros, mas os sangue azul tinham membros que talvez não quisessem ver Xica se sobressaindo. A forma como Paul G a tratará e a fama do maldito lhe preocupavam.

- Por que eles poderiam causar problemas? - perguntou curiosa, a toreador. - Pensarei em uma forma de colocar os malkavianos contra os nosferatu. Precisarei agir na surdina, para que não gere antipatia de Linda Wilson e François Carlent, contra mim, antes do tempo, mas conseguirei. quanto a tudo sair como planejado... se depender de mim, tudo saíra. Infelizmente o mundo não gira em torno de meu umbigo, mas faremos o impossível para que as suas e as minhas expectativas sejam atingidas.

à malícia do sorriso do seu interlocutor, Xica respondeu com um outro sorriso, carregado de encanto. A base do acordo, se é que haveria acordo, estava feita. Agora era o próximo passo. Deveriam aguardar.

- Então estamos entendidos, O'Connor. Agora é esperarmos para ver a queima de fogos. Não é?

- Não somos tão diferentes dos seres humanos, ou das outras espécies sobrenaturais. Não em essência! - ela respondeu colocando-se de pé e caminhando em direção a um ponto que fosse suficiente para ver a noite lá fora, a Baía de Guanabara e a imensidão da Calunga Grande. - Somos um microcosmos apenas. Um quer engolir o outro, atraímos cada um deles para as armadilhas, como os vagalumes são atraídos pela luz.

- A corte do Rio nem bem foi instituída e está prestes a implodir. Os egos são grandes demais. A confusão que o sabbat, os independentes e a guerra aberta que como disse, vai reacender hoje, abrirá possibilidades para que um pequeno acidente aqui, uma garra acertada por engano, um tiro incendiário que errou o alvo. Muitos vão se esconder... mas quem tiver olhos e procurar bem irá encontra-los. Os sangue azul se esconderam desde a queda da Ilha Fiscal, apenas hoje se encontraram com a príncipe. Receberam um outro cainita, de destaque pelo mundo das trevas. O chamam de Paul G, com influências na mídia. Justamente o espaço que eu ocupo. Um acidente com ele faria feliz Xica da Silva.

- A pressa só serve para tornar os estrategistas desesperados, O'Connor. Não é uma pedra no caminho que me fará agir despreocupadamente e de sopetão. - ela sorria. É claro que Paul G seria útil. Ele não iria ataca-la frontalmente logo no início, como a negra também não pretendia fazer isso naquele instante. Até porque ele tinha naus forças com as quais se defender do que ela poderia dispor. Um confronto frontal com um cainita daquela extirpe poderia destruir tudo o que Xica levou anos para construir.

- A maioria de nós ouviu falar dele. Alguns cainitas gostam da ribalta, outros não vivem sem ela.

- Até agora só posso dizer dos nosferatu e dos tremere. Todos se mostraram favoráveis ao governo dos ratos, pela força que Carlent demonstrou. - ela parou um instante, enquanto refletia. Não, não havia ninguém tão próximo dos leprosos quanto os feiticeiros. talvez se Natanael tivesse permanecido na cidade houvesse algo do tipo, entre os toreador e os ovos podres, mas isso não tinha sido concretizado e ela não permitiria que seu próprio clã se tornasse amiga de chá de Linda Wilson. Não quando ela poderia assumir o trono se provocasse certas rusgas.

- Os ratos não fazem falta numa cidade, os feiticeiros talvez me incomodariam sua ausência, considerando a capacidade de defesa mágica deles, mas podemos encontrar alternativas a essa proteção. E o poder que eles acumulam não me deixaria segura.

Ela pega papel e caneta e em poucos instantes escreve o endereço da capela tremere, com todos os dados disponíveis que pode reunir na noite anterior. Não olhava para o papel, escrevia com letras floreadas enquanto mantinha seus olhos fixos no de O'Connor. Ao terminar de escrever, falu, entregando o documento ao lobisomem e colocando a caneta atrás de sua orelha esquerda.

- Está aqui, o exato endereço da capela. Se é que ainda não sabe disso, Lucian!